Um dia sem novelas - espalhe essa idéia

 
A abertura da novela "O Astro", de Janete Clair, e a música "Bijuterias", de João Bosco, martelaram minha mente quase todos os dias do primeiro semestre de 1978, dividindo minha atenção com as aulas de Bar-Mitzvah e o futebol.
Éramos praticamente forçados a consumir telenovelas, crianças no Brasil 70, moralista, careta, culturalmente castrado, onde as famílias passavam direto da mesa de jantar para o sofá da TV, quando não se jantava direto diante da telinha.
(Não sei o que é pior: a família jantar assistindo à TV ou jantar com cada um olhando para o seu smartphone.)
A letra intrigante do bolero de João Bosco grudou na minha memória e voltou inteirinha mais de 30 anos depois assistindo à abertura do remake de "O Astro" na Globo:
"Em setembro
Se Vênus me ajudar
Virá alguém
Eu sou de virgem
E só de imaginar
Me dá vertigem
Minha pedra é ametista
Minha cor, o amarelo
Mas sou sincero
Necessito ir urgente ao dentista
Tenho alma de artista
E tremores nas mãos
Ao meu bem mostrarei
No coração
Um sopro e uma ilusão
Eu sei
Na idade em que estou
Aparecem os tiques, as manias...
Transparentes
Feito bijuterias
Pelas vitrines
Da Sloper da alma."
Sloper, essa eu quase não lembrava, era uma loja de departamentos famosa naquele Brasil militar-capitalista do final dos anos 1970.
A abertura original da novela é uma peça de arte pop psicodélica (que você encontra a dois cliques digitando abertura novela astro no YouTube), com projeções de imagens esotéricas em rostos e corpos e closes do impagável Francisco Cuoco fazendo looks de charlatão, papel que sempre lhe cai muito bem.
A abertura do remake é inspirada na abertura original, e está bem feita justamente por isso.
Mas se a abertura segue com qualidade, no resto, como dizia aquele antigo reclame de xampu, quanta diferença. Principalmente no elenco, já que o original tinha Francisco Cuoco, Dina Sfat, Tony Ramos, Elizabeth Savala, Tereza Rachel, Rubens de Falco, Dionísio Azevedo, Edwin Luisi, Isaac Bardavid.
"O Astro" foi um fenômeno nacional, com pico de 90% de audiência no episódio da revelação do assassino de Salomão Hayyalla. Outra cena marcante foi o passeio nu de Tony Ramos após recusar a fortuna da família e fazer voto de pobreza franciscana.
Mas se aquilo, no plot preciso de Janete Clair, teve algum valor original, a telenovela de meados do século 20 permanecer com essa centralidade até hoje causa espanto e uma brutal atrofia intelectual tanto do produtor de cultura quanto de seu consumidor.
Produto industrial, a telenovela não tem como escapar da linha de produção chapliniana, onde se aperta o mesmo parafuso todos os dias, só transpiração e prazo.
Poucos e corajosos atores desafiam essa máquina de reprimir talentos, como Lima Duarte. Em entrevista à Folha, em 2006, ele desabafou: "É duro fazer novela. Está cada vez mais cansativo. Estão escrevendo a mesma história há 40 anos. Faço o mesmo personagem, e o público chora a mesma lágrima, no mesmo horário. Mas o povo não deixa mudar".
O povo está mudando. As novelas seguem lenta, mas sólida perda de público individualmente. Mas elas seguem campeãs de audiência e principais produtos culturais do país em público, fama e faturamento. Não é Martin Scorsese quem narra as epopéias brasileiras, mas Ricardo Waddington.
O pior é que com a atrofia de nossa dramaturgia, as TVs não conseguem sair da camisa de força noveleira, como prova o número enorme de fracassos dos programas novos da Globo. Sem alternativas, as novelas, paradoxalmente, mesmo decadentes seguem em expansão territorial, com "O Astro" inaugurando o novo horário da novela das onze.
Pior ainda é que parte da crítica cultural brasileira ainda leva a sério essa dramaturgia rasteira da telenovela de hoje, abrindo-lhe páginas nos cadernos de cultura dos melhores jornais.
Somos um povo tão criativo, merecemos representação melhor de nossa narrativa.
Boicote a novela hoje. Amanhã você verá que não faz a menor falta.
Um dia sem novelas, espalhe essa idéia. #umdiasemnovelas

Fonte: Folha de SP

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